Este texto (que já saiu no Jornal de Letras em 2011), descobri-o agora pela mão da minha amiga D.Lídia Oliveira. É um pequeno relato da passagem da escritora Alice Vieira pela Ilha do Corvo. A mais ocidental e a mais pequena ilha do arquipélago, onde vivem apenas cerca de 400 pessoas. Não tive oportunidade de conhecer o Corvo, mas conheci corvinos e muitas destas histórias. Não deixa de ser uma perspectiva pessoal, mas é muito interessante.
Aqui fica um pouco deste texto:
"Cheguei ao fim do mundo. (...) No mesmo avião veio D. Manual Martins, antigo bispo de Setúbal. Diz-me que o padre da terra, que ele nem conhece, precisou de ir tratar-se aos EUA e lhe telefonou a pedir que que o substituísse uma semana. E ele veio. Sou recebida na pista por um senhor que acarta a minha mala, e logo me enfia para dentro de um carro que já viu melhores dias. Diz-me que é na casa dele que vou ficar, porque Outubro é o mês em que a ilha se enche de ornitólogos em cata de aves em trânsito, e é difícil arranjar camas vagas. De repente dá uma gargalhada, apontando para as minhas mãos desesperadamente em busca do cinto de segurança; - Não há! Aqui no Corvo não se usa. Nem capacetes nas motorizadas, nem nada disso... (...) Quero organizar o trabalho para os dias seguintes, e peço um táxi para me levar de manhã a dar uma volta pela ilha. Um sorriso de olha-para-a-esperta-que-vem-do-continente, e logo a resposta: no Corvo não há táxis, nem transportes públicos, e a frota automóvel existente resume-se a meia dúzia de carros particulares, ou nem tanto. Depois há motorizadas, e algumas carrinhas de caixa aberta, onde as pessoas levam o necessário para irem para as terras. E uma tabacaria para comprar jornais? Jornais não há, tabacarias também não. E juro que lhe senti um leve orgulho na voz quando, a seguir a todas as minhas perguntas ("E lojas? E mercado?, etc) ele ia respondendo "não há, não há..." (...) Indica-me onde vou tomar as refeições todos os dias e, já vai a sair, quando lhe peço uma chave de casa, para eu não estar sempre a incomodar quando entro ou saio. Novo sorriso: - No Corvo não há chaves. As portas ficam todas no trinco. (...) Ao almoço (parece que toda a gente come no café da Teresinha), D. Manuel Martins recorda-me que hoje é dia de procissão. Apesar de já ter estado no Corvo, D. Manuel Martins admira-se sempre da pouca frequência nas missas, e da pouca alegria: "Ninguém canta!". (...) Depois da missa das oito da noite, a procissão percorre rapidamente as duas ruas da vila.(...) o entusiasmo não é muito, até porque a maioria é muito velha, as mulheres arrastam-se com dificuldade. (...) À cabeça da procissão, D. Manuel pára muitas vezes para olhar para trás. Numa procissão normal, o padre vem sempre no fim. Mas aqui também deve ser diferente. E por isso ele olha para trás, e faz pausas, para que ninguém fique pelo caminho."Este padre é pequenino, mas anda tão depressa...", murmura uma velhota ao meu lado, dobrada sobre a bengala.
Janto no sítio do costume, a ver na televisão o Benfica ganhar dois zero ao Portimonense. Os homens estão todos lá fora, a fumar. Benfica e Portimonense devem dizer-lhes tão pouco. (...) Afinal de que precisamos para viver? Isto perguntava-me eu, nas primeiras horas de aqui chegar - convencida de que iria encontrar, no meio deste isolamento, uma sociedade ainda não contaminada pelos males do consumo. Rapidamente me fazem descer à terra: estou na sociedade mais desenfreadamente consumista que conheço. Tudo se compra - por encomendas de catálogo, pela lancha que vai às Flores e ao Faial, pela net. A dependência da eletricidade é total. A televisão domina tudo. Todas as casas têm arca frigorifica, televisor último grito, computador, micro-ondas, etc. Se algum tem - todos os outros compram a seguir. E há sempre alguém que vende qualquer coisa: fico a saber, por exemplo, que a Teresinha vende Bimby's que são, ao que parece um sucesso. (...) Aqui ninguém passa fome e, se não há ricos, também não há pobres. Dizem-me que cada corvino tem um lote de terreno e uma vaca.(...) Trabalha-se, pesca-se, à noite vê-se a novela, e os mais novos bebem cerveja nos bombeiros. São um povo estranho. Fechado, pouco simpático, sem tradições de convívio. (...) Estou de partida. D. Manuel regressa também. De todas as conversas que mantivemos, há uma que não me sai da memória: "Eu acho que esta gente não vai muito à igreja porque não sente necessidade. Eles passam a vida neste isolamento todo, nesta lonjura, neste silêncio, nesta imensidão, estão todos os dias em contacto com Deus. Para quê irem à igreja à procura de um Deus formatado?" Quero acreditar que sim. Mas também não me sai da cabeça aquela frase de Raul Brandão, no seu texto sobre o Corvo: "Se não fossem cristãos, matavam-se uns aos outros."
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