8 de julho de 2010

A coroa - parte I

A hora era já avançada, noite cerrada. Todos descansavam, o silêncio reinava. Antes de se deitar, aquele homem aproximou-se do pequeno altar que improvisou na sua sala de estar, num lugar de destaque, onde colocara a “coroa do Espírito Santo”, com uma vela acesa. Esta era a última noite que a coroa ficava em sua casa. No dia seguinte teria de levá-la a casa de outra família sua conhecida, também eles “irmãos do Espírito Santo”. Ajoelhou-se e, como sempre fazia desde que se lembra de ser gente, rezou perante aquela coroa imperial, toda de prata, colocada sobre uma bandeja de pé alto, também em prata. No topo da coroa, uma pomba de asas estiradas. A sua mãe, pai, tios, vizinhos, toda a gente que conhecia, tinham fé e praticavam os rigorosos rituais do “culto do Divino Espírito Santo”. Todos participavam dos cortejos, das coroações, das sopas e das festas dos “Impérios”. Nunca se questionou acerca da origem deste culto. Desconhecia que as crenças e ritos do “Divino Espírito Santo” foram trazidos para os Açores pelos primeiros religiosos colonizadores, numa altura em que esse culto já estava em apagamento na Europa, pelo facto da igreja católica ter reconhecido que essas práticas não se coadunavam com a Bíblia. Ele não sabia nada disso. O que ele sabia era que para viver numa ilha, no meio do oceano, sujeito às agruras da natureza, não basta confiar apenas na força do Homem. Ele sabia que era fundamental ter fé, crer em algo a que se pudesse agarrar quando a terra treme, quando o alimento escasseia, ou quando inexiste médico para acudir a uma emergência. E a fé que lhe ensinaram a ter foi naquela “pomba”. Nunca tinha conhecido outra fé além daquela. Às vezes achava todas aquelas tradições demasiado exageradas e pouco condizentes com o estilo de vida que as pessoas têm fora daquele ambiente litúrgico. Porém, fora ensinado com tal fervor que, para ele, ser açoriano é ser devoto desse culto. Há uma identidade. Alguns dos acordes do hino do Espírito Santo estão presentes no hino da Região Autónoma dos Açores. É uma fé brutal. Apagou a vela e ficou ali por mais uns momentos. Sentia que tinha sido uma honra ter tido aquela coroa em sua casa durante aquele mês.
(continua)

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